Oswaldo Martins
Oswaldo Martins. Poeta e professor de literatura. Autor dos livros desestudos, minimalhas do alheio, lucidez do oco, cosmologia do impreciso, língua nua com Elvira Vigna, lapa, manto, paixão e Antiodes, com Alexandre Faria. Editor da TextoTerritório
quarta-feira, 20 de novembro de 2024
terça-feira, 12 de novembro de 2024
sega
neste
corpo encerra-se o tempo curto
nossa
conta ambígua de zero a x
alguns
bolsões criariam atos turvos
à
espera, a vida advém por um triz
no
alumbramento – apenas o instante
aberto
entre o rumor e a ausência –
constrói
alicerces que se roem ante
o
abrupto dos fatos e a insciência
do
ato seguinte ao ir fazer as compras
deixa
quieto o duro odor em ásperas
bocas
sem salivas prontas para o gás
mas
nem isso sequer a vida nos faz
permite
a só busca da última aceira
e
nos deixa a viver recolhas tontas
domingo, 27 de outubro de 2024
Capital
os blocos de nuvem
no silêncio dos cortes
inventam negocinhos
coisa de pouca monta
uma dona carola
a dona augusta
há sempre quem
nos acolchoados das ruas
tece o sobretudo do fim
depois o ainda
ao despir a cara
tange o lirismo fino
dos engolidores de lua
domingo, 20 de outubro de 2024
teoria 1
teoria 1
loucamente temperaturas aumentam
a fricção provocada pelo cisalhar
de corpos magmáticos próximos
causa papéis amorfos
não cabem homens crus
sequer a cruel desaparição
se aventa cintilante palavra
e causa sempre maiores destroços
sexta-feira, 20 de setembro de 2024
Domesticação
S. espiava de sua janela. A amplitude da praça, o parque pelo qual as pessoas passavam, sem deixarem de olhar para baixo, desligadas do que havia em torno, com seus capuzes que lhes cobriam o rosto, deixando apenas de fora os olhos para que não tropeçassem e fizessem com que os outros, do pelotão de trás, as pisoteasse. Os passos sincronizados, as mãos trêmulas que se estiravam ao longo do corpo eram uma imagem única, desprovida de matizes. Todos vestiam roupas sem nenhum atrativo; os corpos semelhantes não os individualizam; os ruídos monótonos não faziam referência a nenhuma música. Caminhavam e despareciam.
Mais ao longe, se aguçasse o olhar, veria alguns soldados chicotearem outro grupo de pessoas, ouviria os gritos, perceberia os rostos plenos, sob os esgares medonhos e ameaçadores, os acordes violentos e vivos, as mãos a se agitarem, os quadris a inventarem passos, uma flor brotar ao acaso entre as pessoas e logo sumir, as cores desenfreadas a se mostrarem nos cabelos, as luzes. As portas se abriam com estrondo. Veria serem as pessoas jogadas para dentro delas, as engenhocas, os corpos nus, os leitos em fileiras, os homens ali amarrados.
Se ainda estivesse atenta, perceberia, atrás da porta que se fechara, alguns homens de terno, com seus aparelhinhos luminosos, tocarem uma superfície lisa da qual surgiam imagens harmônicas, interrompidas de vez em quando por um pequeno ruído que os fazia deslizarem o dedo por ela. Surgiam então conhecidos felizes, cujas roupas coloridas encantavam àqueles que as olhavam. Observaria ainda que a sala de repente escurecia e apenas alguns pontos se iluminavam e que os aparelhinhos haviam trocado de mãos.
De sua janela, veria os homens, antes agitados, sorrirem e receberem suas roupas com capuz e serem levados de volta à praça. Caminhavam quietos e cabisbaixos, as mãos tamborilando ansiosas e lentas na altura dos quadris em direção às suas janelas de onde poderiam observar o espetáculo do mundo, as cores vivas com a quais ele tomava forma e o simulacro de si mesmos caminhando despreocupados pelo parque que não mais notariam.
quarta-feira, 18 de setembro de 2024
lingerie
lingerie
o pequeno buraco se fizera
após alguns anos
de algodão barato
insinuante o cheiro dos dias
na curva da bunda
o furinho sem incômodo
ajeitava mosaicos
sobre a pele
s. preferia a de cor roxa
(oswaldo martins)
ilhas-de-não
a bailarina
para julia fernandez
revela-se essa moça quando braços
antecedem os movimentos do corpo
a arrastarem-se ao som de uma voz
ausente e às marcações de indícios
alheias formas de escultura e busca
sujeitas ao discernimento metafísico
das negativas e dobras cujas voltas
fazem dançar no cimento da cidade
as sombras antes etéreas por refletir
no móbile do espaço o corpo reposto
à carne e ao friúme da força acessa
da boca do lixo ao esplendor informe
tanto fulge o fausto da chama quanto
o chão simula o anteparo da leveza
quarta-feira, 26 de junho de 2024
anágora
letras carcomidas visitam
a biblioteca podre homero
morto morta a viagem
o estupor sem urgência
estende a mão à criança
e seus destroços
o último olhar seca
sobre o abismo
desta ilha em negativo