QUERIDO DIÁRIO
1
o fruto
do trabalho
chega a noite
vou com ela pra cozinha
boto o avental
pego a faca mais afiada
e limpo os peixes
que não peguei durante o dia
2
liquidação
tudo a um real
só tenho sonhos na carteira
3
novo normal
a Terra ficou plana
e o Sol
nasce
quadrado
4
agenda
todo
dia
a
mesma rotina
acordar
lavar
o rosto
tomar
café
e
morrer
MORTE FÁCIL
morri
a cada berro e porrada
que iluminaram a infância de relâmpagos
toda vez que me descobriram
descobrindo corpos
meu dos outros
todas as vezes em que entraram
sem pedir licença
em cada traição
goela abaixo
até que eu aprendesse a trair
e morrer
nas refeições diárias de medo
nos vômitos guardados nas gavetas do estômago
na pressa dos passos paralisados
sem nem confessar
olha estou morrendo
mortezinha besta quieta calada
derrota nada heroica
hoje
especialista
morro de segunda a domingo
morro até dormindo
e escrevendo um poema
TRANSPORTE URBANO
vagalumes forram a noite de algodão
e o céu bota um ovo
nos figos do sonho
talvez ainda possam se amar
montanha e mar
viajo por Maracangalha
Pasárgada Núncaras
Terras do Sem Fim
Babel Lilipute Carabás
Oz Macondo Taprobana
viajo até o vinho virar uva
um quase tudo
que começa e se acaba em quase nada
ultrapassarei a faixa amarela?
CADERNO ESCOLAR
primeiro vieram os do norte
e nos mandaram destruir nossas plantações
e plantar novamente
e destruir e plantar e
depois chegaram os do sul
e mataram os do norte
e nossos cães e avós
e nos mandaram demolir nossas casas
e reconstruir e demolir e
então os do norte voltaram
e nos deram armas
e nos fizeram fuzilar os do sul
e nossos vizinhos
e pais
agora os do sul e os do norte
deram as mãos em nome da paz
nos disseram que finalmente estamos livres
e não conseguimos descobrir do que
a orquestra do titanic
anima o baile da ilha fiscal
números slogans rezas
ninguém mais fica calado
a traição que se aprende
devora os nossos passos
containers no cais do porto
com toneladas de piedade
mil caminhos na porta
e nenhuma fechadura
um palmo é nossa medida
de raso e medo profundo
o plástico embrulha estômagos
bairros oceanos
muros recitam flores
panfletos com patrocínio
numa chuva de napalm
navega a arca de Noé
os casais se desfazem
em seu próprio dilúvio
apagados os passados
nunca teremos sido
mas não se aflija - à noite
tem fim do mundo outra vez
e a extensa fila de abelhas
no mercado a comprar mel
ONDE
calma
ele já volta
foi só buscar a lâmpada
e os comprimidos
não é um adeus
ainda há desejos esfarelados
que não saltaram pela janela
olha ali no canto
não é a infância abanando o rabo?
o gol os tecidos a xícara emprestada de açúcar
os ossos
calma
os silêncios já vêm te ninar
desossar teus tímpanos
ele vai calafetar as frestas os medos as cáries
a voz do pássaro cego
olha
ali no canto
não
é o cão vomitando vogais?
calma
esquece o choro
engole o frio
não são seus passos subindo a escada?
vem anda
alinhava teu pesponto
teu sono forrado de pregos
estende a mão
fura bolos mata piolho pai de todos
cadê o homem que estava aqui?
A MUDANÇA
plantei
alegria e festa
nasceram
três pés de pânico
os
olhos paralisados
pelas
pegadas do trânsito
águas
que brotam paradas
movem
moinhos de tempo
passados
seguem passando
o
pavor sentindo medo
sou
náufrago no deserto
lanço
garrafas ao céu
todos
os dentros de fora
não
me iluminam o breu
atalhos
de latifúndio
a
morte a galope avança
coração
um quitinete
onde não cabe a mudança
CESAR
CARDOSO
Valeu, Oswaldo. Vamos juntos. Beijo.
ResponderExcluirCesar Cardoso, uma alma poética inesgotavelmente transbordante.
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