quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

César Cardoso - poemas

QUERIDO DIÁRIO

 

1

o fruto do trabalho

chega a noite

vou com ela pra cozinha

 

boto o avental

pego a faca mais afiada

e limpo os peixes

que não peguei durante o dia

 

2

liquidação

 

tudo a um real

só tenho sonhos na carteira

 

3

novo normal

 

a Terra ficou plana
e o Sol nasce
quadrado

 

 

4

agenda

 

todo dia

a mesma rotina

 

acordar

lavar o rosto

tomar café

e morrer

 

MORTE FÁCIL

 

morri

 

a cada berro e porrada

que iluminaram a infância de relâmpagos

 

toda vez que me descobriram

descobrindo corpos

meu dos outros

todas as vezes em que entraram

sem pedir licença

 

em cada traição

goela abaixo

até que eu aprendesse a trair

e morrer

 

nas refeições diárias de medo

nos vômitos guardados nas gavetas do estômago

na pressa dos passos paralisados

 

sem nem confessar

olha estou morrendo

mortezinha besta quieta calada

derrota nada heroica

 

hoje

especialista

morro de segunda a domingo

morro até dormindo

e escrevendo um poema

 

 

TRANSPORTE URBANO 

 

vagalumes forram a noite de algodão

e o céu bota um ovo

 

nos figos do sonho

talvez ainda possam se amar

montanha e mar

 

viajo por Maracangalha

Pasárgada Núncaras

Terras do Sem Fim

Babel Lilipute Carabás

Oz Macondo Taprobana

 

viajo até o vinho virar uva

um quase tudo

que começa e se acaba em quase nada

 

ultrapassarei a faixa amarela?

 

 

CADERNO ESCOLAR

 

primeiro vieram os do norte

e nos mandaram destruir nossas plantações

e plantar novamente

e destruir e plantar e

 

depois chegaram os do sul

e mataram os do norte

e nossos cães e avós

e nos mandaram demolir nossas casas

e reconstruir e demolir e

 

então os do norte voltaram

e nos deram armas

e nos fizeram fuzilar os do sul

e nossos vizinhos

e pais

 

agora os do sul e os do norte

deram as mãos em nome da paz

nos disseram que finalmente estamos livres

e não conseguimos descobrir do que

 

 

 A FESTA

 

a orquestra do titanic

anima o baile da ilha fiscal

 

números slogans rezas

ninguém mais fica calado

 

a traição que se aprende

devora os nossos passos

 

containers no cais do porto

com toneladas de piedade

 

mil caminhos na porta

e nenhuma fechadura

 

um palmo é nossa medida

de raso e medo profundo

 

o plástico embrulha estômagos

bairros oceanos

 

muros recitam flores

panfletos com patrocínio

 

numa chuva de napalm

navega a arca de Noé

 

os casais se desfazem

em seu próprio dilúvio

 

apagados os passados

nunca teremos sido

 

mas não se aflija - à noite

tem fim do mundo outra vez

 

e a extensa fila de abelhas

no mercado a comprar mel

 

 

ONDE

 

calma

ele já volta

foi só buscar a lâmpada 

e os comprimidos

não é um adeus

ainda há desejos esfarelados

que não saltaram pela janela

olha ali no canto

não é a infância abanando o rabo?

o gol os tecidos a xícara emprestada de açúcar

os ossos

 

calma

os silêncios já vêm te ninar

desossar teus tímpanos

ele vai calafetar as frestas os medos as cáries

a voz do pássaro cego

olha ali no canto

não é o cão vomitando vogais?

 

calma

esquece o choro

engole o frio

não são seus passos subindo a escada?

vem anda

alinhava teu pesponto

teu sono forrado de pregos

estende a mão

fura bolos mata piolho pai de todos

cadê o homem que estava aqui?

 

 

A MUDANÇA


plantei alegria e festa

nasceram três pés de pânico

os olhos paralisados

pelas pegadas do trânsito

 

águas que brotam paradas

movem moinhos de tempo

passados seguem passando

o pavor sentindo medo

 

sou náufrago no deserto

lanço garrafas ao céu

todos os dentros de fora

não me iluminam o breu

 

atalhos de latifúndio

a morte a galope avança

coração um quitinete

onde não cabe a mudança

 

CESAR CARDOSO

 

2 comentários: